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Parábola dos Ursos

Victor Calvete

OBSERVADOR 22/1/2018

Nada teria contra a Parábola – se houvesse ursos na minha terra. Mas não há – e utilizar as armadilhas contra os nossos lobos para fortalecer os ursos dos outros não me parece uma boa ideia.

As Parábolas têm uma larga tradição em Economia – desde, pelo menos, a dos talentos (o aforro gera castigo), embora a das abelhas (são os vícios privados que fazem as virtudes públicas) tenha um ferrolho mais fácil. Por outro lado, a zoologia tem vindo a fornecer designações para as empresas (vg: unicórnios, gazelas, chitas...).

Assim, sendo certo que o eco-sistema económico não é menos variado do que o ecológico, com diferentes espécies a explorarem as suas diferentes vantagens competitivas, é razoável propor uma nova Parábola zoológica, na qual entram os seguintes personagens (para evitar que algo se perca, vai a legenda com os equivalentes económicos):

lobos (empresas de pequena e média dimensão);

ursos (empresas de grande dimensão);
coelhos (consumidores);
fabricantes de armadilhas (Governos e Parlamentos);
aplicadores de armadilhas (autoridades de defesa da concorrência e tribunais);
Grande Caçador (Theodore Roosevelt) e o seu sucessor (William H. Taft);

Refundador (Thurman Arnold);
Salvador dos ursos (Ronald Reagan).

A história é esta: até à Guerra Civil americana, os lobos viviam felizes, isolados nos seus limitados territórios de caça. Na sequência desse conflito e das transformações dos transportes e comunicações que alargaram a dimensão dos mercados e das inovações que permitiram a produção em maior escala e o seu escoamento, uma nova espécie irrompeu nas economias da América do Norte: os ursos – poderosos, agressivos, numerosos. Os lobos, cada vez mais dizimados pelos novos predadores, persuadiram os coelhos e os fabricantes de armadilhas de que os ursos eram um perigo para ambos, e conseguiram fazer aprovar, nas décadas de 80 e 90 do Século XIX, as primeiras armadilhas anti-ursos. Porém, por essa altura já os fabricantes de armadilhas – e os seus aplicadores – estavam mais afeiçoados aos ursos do que aos lobos, de modo que daí para a frente essas armadilhas acabaram por servir, essencialmente, para apanhar lobos. A tal ponto, aliás, que muitos lobos se convenceram que a melhor maneira de lhes escapar era transformarem-se, colectivamente, em ursos – o que fizeram, para grande vantagem americana, que foi o primeiro país a descobrir que um sistema económico baseado em ursos é muito mais poderoso do que um outro baseado em lobos.

O Grande Caçador também achava isso, e nem sequer gostava das armadilhas que podia usar, mas ainda gostava menos do poder dos ursos, que parecia poder exceder o seu. Para os submeter, fez usar essas armadilhas contra eles pela primeira vez. O seu sucessor seguiu-lhe o exemplo, mas depressa percebeu que as armadilhas tinham de ser limitadas. Tratou então de usar os seus poderes junto dos aplicadores de armadilhas para as tornar “razoáveis”, entrando em choque como seu antecessor. Por causa disso, ambos se defrontaram nas eleições de 1912, disputadas à volta das medidas a aplicar aos ursos – e, em consequência, em 1914 foram aprovadas armadilhas novas – mas, não dependentes da intervenção de um nem de outro, não mais funcionais do que as anteriores.

As (novas e velhas) armadilhas estiveram quase a ser esquecidas; até que, em plena seca que, mesmo no final dos anos de 1930, ainda assolava a América, o mais conhecido descrente nas armadilhas foi encarregue de tomar conta delas. Sendo um homem de palcos, usaria o que pudesse para actuar no principal – até essas quase inúteis armadilhas. Graças a esse Refundador, as armadilhas começaram a apanhar um surpreendente número de lobos e ursos, que ele fazia questão de enjaular por igual. Assim teria continuado, mas entretanto veio a guerra – e já se sabe que na guerra quanto mais ursos tivermos do nosso lado, melhor. É verdade que quanto mais problemático se tornava caçar ursos americanos, mais ele procurava caçar ursos inimigos – mas como não desistia de caçar ursos americanos foi afastado. Os ursos americanos ficaram sossegados e, para evitar problemas, os sucessores do Refundador procuraram caçar sobretudo ursos alheios – tentando exportar as suas armadilhas para os seus aliados, e aplicando-as nos territórios dos inimigos derrotados, tanto na Europa como na Ásia. A primeira intenção não foi bem sucedida – cada aliado fazia o possível para não manietar os seus ursos – e a segunda foi abandonada logo que os inimigos derrotados se tornaram aliados preferenciais na contenção dos inimigos. Afinal de que serve um aliado sem ursos?

Nas décadas seguintes, porém, as armadilhas internas viraram-se em termos tais contra os ursos americanos que os próprios fabricantes de armadilhas recearam ficar à mercê dos ursos estrangeiros – que as armadilhas alheias quase nem beliscavam. Era preciso um Salvador dos ursos, e ele veio: convencendo os coelhos de que as armadilhas serviam (praticamente só) para evitar os ataques conjugados dos lobos, e nomeando só para aplicadores das armadilhas quem acreditasse nisso, voltou a construir um sistema baseado na força dos ursos.

Com atraso, os estrangeiros – que entretanto tinham começado a usar as suas armadilhas para caçar indistintamente lobos e ursos – passaram a fazer o mesmo: também eles perceberam que seriam mais fortes se o seu sistema se baseasse nos ursos, do que se assentasse nos lobos.

Pessoalmente, tirando o facto de me tentarem convencer de que, ao proibirem a caça em alcateia, os ursos estão a cuidar do bem estar dos coelhos (!), nada teria contra a Parábola – se houvesse ursos na minha terra. Mas não há – e utilizar as armadilhas contra os nossos lobos para fortalecer os ursos dos outros não me parece uma boa ideia. 

Marcelo Rebelo de Sousa: Português Suave

Claramente, o Presidente eleito quis dizer ao Governo para onde ele deve ir. Mesmo, ou sobretudo, por bem saber que não é para aí que o Governo quer ir.

30 jan. 2021, 00:001

https://observador.pt/opiniao/mrs-portugues-suave/

 

Há várias ilações curiosas a retirar do discurso que o Presidente reeleito proferiu na noite da sua reeleição – e que ele próprio parece convidar a descobrir –, mas algumas delas desajustam-se da atitude que adoptou nessa noite. Uma dissonância – alguns diriam uma inconsequência –, que não deixa de ser a revelação da suavidade que caracteriza a sua intervenção política como Presidente (ou, até, de uma verdade mais funda: ninguém deixa de ser aquilo que é).

A atitude

Por mais estranho que isso possa parecer, houve televisões que acharam relevante dar conta das deambulações do carro pessoal do Presidente eleito a caminho da Faculdade de Direito de Lisboa (!). Só por isso soubemos que andou às voltas, a fazer tempo para entrar em cena. O que é estranho: nessa noite, mais ainda do que nas outras, ele era pleno senhor do seu tempo. Não precisava de esperar por ninguém, muito menos pelo termo da mensagem da primeira da meia dúzia de candidaturas que, no conjunto, somaram menos 900 mil votos do que a sua – e que sairia de antena logo que ele saísse do carro. Mas o Presidente eleito é mesmo assim: cordial e atencioso com os outros, mesmo quando era aos outros que competia serem cordiais e atenciosos com ele. Um caso raríssimo nos protagonistas da nossa alta política.

O discurso

Ao invés, o discurso – que retomou muito deliberadamente o simbolismo pombalino de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos” (“Até porque a melhor homenagem que podemos prestar aos mortos que lembrei no começo destas palavras é cuidar dos vivos e com eles recriar Portugal.”) – assentou na afirmação de uma prioridade absoluta (“a principal resposta dada por esta eleição é uma e uma só: tudo começa no combate à pandemia (…) sendo tudo urgente (…), o mais urgente do urgente chama-se agora combate à pandemia”). O que, sendo uma pura proclamação, se compreenderia mal (e não teria qualquer sentido) se já tivesse sido definida por quem de direito: o Governo – que continua a fazer o que faz melhor: andar a reboque das circunstâncias (nem de propósito, no dia seguinte o Ministério da Saúde divulgou ter pedido à DGS “informação sobre revisão de medidas face a novas variantes”).

Claramente, o Presidente eleito quis dizer ao Governo para onde ele deve ir – mesmo, ou sobretudo, por bem saber que não é (não era) para aí que o Governo quer (queria) ir.

O facto político

Onde o discurso deixa de ser um recado ao Governo quanto ao que há a fazer, torna-se num recado ao Governo sobre o sentido desse recado: ao sublinhar o reforço da sua legitimidade (“O mandato nas condições em que foi conferido (…) com uma significativa subida de percentagem e de voto absoluto relativamente há cinco anos, obriga o Presidente reeleito a reter duas mensagens muito claras”, sendo que a segunda, relativa a alterações procedimentais no voto, é de somenos face à primeira: “Ter a noção de que os portugueses ao reforçarem o seu voto querem mais e melhor (…) Entendi esse sinal e dele retirarei as devidas ilações.”).

Simbolicamente, o Presidente estava a invocar – sobretudo perante o Primeiro-Ministro, não se duvida – o estatuto pombalino de que pretende revestir a sua intervenção: ele revê-se (ou pelo menos quereria que António Costa o revisse) não apenas na magnitude da tarefa, mas no papel implacável de quem a executou.

O problema é que não é Pombal quem quer – e Pombal não andaria às voltas de carruagem antes de chegar ao Paço, só para não embaraçar um rival.

Muito menos um rival derrotado.

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